Joana Soleide Dias[1]
Orientação: Rosangela Paiva Spagnol. Prof. MS.
O direito de nascer é assegurado pela Legislação Brasileira, tal como se vê no artigo 2º do Código Civil, ficando clara a intenção de proteger a vida, antes mesmo do seu nascimento.
Art. 2º - A personalidade Civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro; (grifo nosso)[2]
A Constituição Federal de 1988, Constituição cidadã, no seu elenco de garantias, tem a vida como bem maior, e garante todos os meios necessários para a dignidade.
Desta forma, inferimos que o ordenamento jurídico brasileiro oferece proteção e garantias que, as quais são ignoradas, desrespeitadas, aviltadas com as práticas do dia-a-dia, os costumes e necessidades impostas por uma sociedade cujo modelo é o privilégio dos que podem mais, a ostentação é o estilo desejado pela maioria.
Um modelo formatado pela mídia, pelas redes sociais da internet, em que aqueles que têm mais desfrutam de status, reinando a cultura do “quanto mais, melhor em tudo”, tem levado as pessoas a cometerem desatinos. Alguns crimes remotos, outros novos.
Todos os dias são apresentados nos noticiários, atitudes e acontecimentos cometidos por pessoas pelos motivos mais inimagináveis, barbáries que estão distante do entendimento de qualquer ciência ou estudo do comportamento humano, crimes os quais não são praticados sequer pelas espécies do reino animal irracional.
A banalização da vida é tão absurda que vimos filhos matando pais e vice-versa, numa problemática grave, a qual não aprofundaremos para não perder o foco da discussão, qual seja, o direito de nascer e viver.
Serve apenas como um alerta para demonstrar a “animalização” do ser humano – se é que assim podemos dizer, já que nem os animais irracionais matam com tais graus de crueldade e quando matam o fazem somente pela sua sobrevivência.
Muito embora vigore em direito de nascer, cabe uma discussão acerca do direito de viver, temas que se complementam e não se dissociam como vemos na crônica do ilustre escritor, MIGUEL TORGA (1940), em sua obra “Bichos”, como adiante é visto:
“És, pois como eu dono deste... Nem pretendo sugerir que o leias com a luz da imaginação acesa,... porque a árvore não explica seus frutos, embora goste que lhos comam. Saúdo-te apenas nesta alegria natural, contente por ter construído uma barcaça onde a nossa condição se encontrou, e, onde poderemos um dia, se quiseres atravessar o Letes, que é como sabes, um dos cinco rios do inferno, cujas águas bebem as sombras, fazendo-as esquecer o passado. Teu Miguel Torga”.[3]
A dicotomia destacada é para a degustação de cada um, para que ao final, se tenha o entendimento extraído da própria experiência e visão do mundo. Não se tem aqui a intenção de aclarar o assunto, mas, muito mais de levantar a questão em que a proteção ao direito a vida não se esgota na discussão entre abortar ou não. Protegendo o direito de nascer é necessário um levantamento sistemático das situações de risco da gravidez, e, um acompanhamento das condições da gestante para levar a bom termo o Direito de nascer, comprometido com o Direito de viver; uma vida digna e sustentável, com o cumprimento das garantias Constitucionais de direito à saúde, educação, como continuação da proteção à vida,
A vida, como bem maior, protegida pelas leis, tutelada pelo Direito é a razão da existência de todas as coisas, desde os elementos naturais criados por Deus, aos materiais criados pelo homem.
Sabedores de tudo isso, questionamos, no entanto o direito de nascer. Quem pode dizer quem deve ou não nascer? E sob que condições? Talvez seja essa a maior polemica a ser enfrentada pelos nossos legisladores e juristas nos dias atuais.
Seja qual for a situação do feto: anencefálico, resultante de estupro, defeituoso, ou com qualquer outra característica, do prisma positivista, não perde o direito de nascer. Entretanto, indagamos sob outro ponto de vista, do pós-nascimento, estará assegurado o direito de viver, com dignidade, respeito e todas as garantias previstas na Constituição Federal e demais normas brasileiras? Ademais, pode alguém decidir pela mulher que carrega no ventre aquele feto se tem ela condições ou não de gerar e criar aquele filho?
O que legitima uma gravidez é o desejo da mãe. A mulher manterá uma gravidez, ainda que seja paupérrima, mesmo que seja o resultado de um estupro, ou um caso de anencefalia, se esta for a sua vontade. O pensamento inverso também é verdadeiro, isto é, se não desejar, interromperá a gestação realizando um aborto, comprometendo, muitas vezes, a sua saúde, colocando-se em risco de morte e prejudicando também uma futura gestação desejada.
Segundo o Código Penal Brasileiro, o aborto é crime e a pena prevista é de até três anos de reclusão, exceto se não houver outro meio para salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultou de um estupro. Em qualquer destas circunstâncias o aborto deve ser consentido pela mulher ou, quando ela é incapaz, por seu representante legal.
Contudo, há que se ressaltar que, mesmos nos casos previstos em lei, a burocracia é muito grande, dificultando o acesso seguro ao aborto. Segundo ANDALAFT NETO, (1993).:
“....há muita burocracia, em termos de exigências do poder judiciário, da polícia e dos médicos, para que uma mulher consiga interromper a gravidez na rede pública de saúde. No Estado de São Paulo, por exemplo, só existe um serviço de aborto legal, na capital”[4]
“Apesar de todos esses problemas, há evidências de que o aborto é amplamente praticado no Brasil (GARDNER, 1975; FREJKA, 1988; COSTA, 1993).Esta situação contraditória tem levado, nos últimos anos, alguns setores da sociedade, tais como grupos organizados de mulheres e políticos ligados a partidos de esquerda, a trazerem o assunto para uma discussão mais ampla, que possa resultar na alteração da legislação vigente. Neste momento, no âmbito do Ministério da Justiça, está atuando a Comissão para Elaboração do Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal. Logo, é oportuno o debate acerca do assunto porque se identifica uma possibilidade objetiva de mudar a lei. Organizações como o Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF) de São Paulo e o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) de Brasília estão aproveitando a ocasião para mobilizar outros grupos, no sentido de pressionar a referida Comissão para que esta proponha mudanças significativas na legislação referente ao aborto (CECF, 1993; CFEMEA, 1993)”. [5]
Ainda que não se possa mensurar ou qualificar, é o desejo da mãe, e seus motivos sejam a favor ou contra é que vão levar ao sucesso de uma gestação. Se pensarmos que protegendo o direito de nascer estamos protegendo o direito de viver, estamos numa encruzilhada tão desconforme, quanto disparatada, pois são direta e indiretamente ligados, interdependentes, mas, se não houver a vontade de um haverá, certamente, o prejuízo do outro.
Não se pretende aqui tomar partido, apenas levantar a questão pelo lado da mulher, cujos valores, cultura, família, modo de vida, tudo leva a influenciar na decisão.
A permissão para se fazer o aborto como está atualmente, já esbarra na dicotomia do direito de nascer e de viver.
Recente pesquisa realizada em Campinas pelo Centro de Pesquisa e Controle das Doenças Materno-Infantis, apresenta as diversas razões que levariam as mulheres à pratica do aborto, como abaixo é visto:
“(opiniões das mulheres sobre em que circunstâncias os hospitais deveriam fazer aborto)
Modelo 1 - A gravidez foi resultado de estupro
Modelo 2 - Ficou grávida usando um anticoncepcional
Modelo 3 - A mulher tem doença grave e não vai resistir à gravidez
Modelo 4 - A mulher trabalha, precisa do salário e será despedida se levar a gravidez até o fim
Modelo 5 - O feto tiver algum problema ou defeito grave
Modelo 6 - A mulher é solteira e o namorado sumiu depois dela ficar grávida
Modelo 7 - Quando a mulher achar que não tem condições financeiras de ter o filho
Modelo 8 - Quando a mulher achar que não tem condições psicológicas emocionais de ter o filho
Modelo 9 - A mulher não deseja o filho”.[6]
Em que pese o desenvolvimento econômico do País, os avanços nas áreas sociais e educacionais, da ciência e tecnologia, dos esforços para o amadurecimento do debate em torno dos segmentos envolvidos no tema, sempre teremos decisões espinhosas quando o assunto for aborto.
Permitir ou proibir o aborto não resolve o problema. As experiências mostram que em países onde o aborto é permitido, as situações de abandono são tão aviltantes como onde se proíbe. Daí a inferirmos que a tutela do Estado não deve ser apenas legal, mas principalmente, psicológica, educacional, material. Tutelar o direito do nascituro é um passo que deve vir acompanhado com a tutela da mãe, o acompanhamento das suas condições para que o filho realmente tenha Direito de nascer, querido, esperado, amado; com a garantia de que está assegurado o seu Direito de viver.
No recorte do conto Madalena do contista MIGUEL TORGA, da obra “Bichos”, que percorreu o mundo demonstrando a animalização do ser humano, pretendemos ilustrar o quanto é importante e necessário a vontade da mãe para garantir o Direito de nascer, e talvez daí concluirmos que antes de permitir ou proibir, devemos priorizar a preocupação na mãe, pois ela é quem verdadeiramente garante o bom direito de viver.
“Madalena arrastava-se a custo pelo íngreme carreiro cavado no granito, a tropeçar nos seixos britados por chancas e ferraduras milenárias. De vez em quando parava e, através dum postigo aberto na muralha das penedias, olhava o vale ao fundo, já muito longe, onde o corpo lhe pedira para ficar, à sombra de um castanheiro. O corpo. Porque a vontade fizera-a atravessar ligeira a frescura tentadora da Veiga e meter-se animosa pela encosta acima. Tudo estava em chegar a Ordonho a tempo da sua hora. Começara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiro aviso, resolvera partir. Sabê-lo, até ali, só ela e Deus. Nem o maroto que lhe fizera o serviço desconfiava. Dera o Tropeção, é certo, mas em seguida conseguira esconder a nódoa dos olhos do mundo – a nódoa maior que a pode sujar uma mulher. Servi-lhe apenas de estrumeira, consentir que se utilizasse dela como de uma reca, não. Graças a essa Firmeza, estava quase a chegar ao fim do fadário na consideração de todo a gente. Bastava agora ter coragem e ânimo nas pernas. Na primeira quem quer cai... Mas tomara a peito manter-se pura daí em diante,... Nove meses como nove novenas! Preferia morrer, a ficar nas bocas do mundo. Fechou-se em casa, com a desculpa de andar adoentada, e aguardou que chegasse o momento de largar. Nem viva alma, ao sair da aldeia!...Estalava de secura. Ao tormento do cansaço e à crueldade das guinadas traiçoeiras que a anavalhavam quando menos esperava, juntara-se uma sede funda, grossa, que a reduzia inteira a uma fornalha de luma. Madalena, não passava de uma pobre mulher, que ia ali naquele ermo excomungado, trespassadinha, já sem forças para mais, com o maldito filho dentro da barriga aos coices. E Tudo por causa das falinhas doces do Armindo,... Mas pronto. Estava feito, estava feito. Fez de conta que nada acontecera. Só que daí por diante passou a desviar-se das ocasiões, embora sempre à espera. Calada como um testamento, aguardou que o rapaz viesse falar-lhe a sério. Mas o cão só pensava na carniça. Quando voltou, trazia apenas o vício assanhado. E mostrou-lhe o caminho. Tratou de enfaixar o ventre sob o saiote de lã, e foi vivendo. À noite, na cama, é que em vez de passar contas passava lágrimas... Como vivia só, ninguém, felizmente, dava fé das suas mágoas. E ali se arrastava quase morta, por ermos amaldiçoados, para que tudo continuasse entre ela e Deus. O futuro para um lado, vago, distante, irreal; o presente para o outro, urgente, positivo. Água! Mas água, só a que lhe inundou de repente as partes, e lhe escorria pelas coxas abaixo, quente, viscosa, pesada...Estremeceu. Poderia ainda continuar? Poderia ainda arrastar-se, cheia de febre, extenuada, em ferida, pela serra a cabo? E as dores cada vez mais apertadas, que a varavam de lado a lado, a princípio rastejantes, quase voluptuosas, e depois piores que facadas? Não, não podia continuar. Agora só atirar-se ao chão e... rolar sobre a terra em brasa, negra, saibrosa, eriçada de tocos carbonizados, sem palha centeia a quebrar a dureza das arestas,...Aguilhoado de todos os lados, o corpo começou a torcer-se, aflito. E daí a pouco arqueava-se retesado, erguido nos calcanhares e nos cotovelos, a estalar de desespero. Dentro dele, através dele, um outro corpo estranho queria romper caminho. E toda ela era um uivo de bicho crucificado. Suava em bica. Escorria das fontes à sola dos pés. O sol já não estava a pino. Nem um som, nem a presença duma aragem a quebrar a solidão que a cercava. Apenas num céu em fim de incêndio um mormaço cerrado. Abriu de todos os olhos turvos. Entre as pernas, numa poça de sangue, estava caído e morto o filho. Carne sem vida, vermelha e suja. O segredo dela e de Deus!... Ergueu-se, então. E permaneceu assim alguns segundos a ouvir o silêncio, como a ver se lá do longe vinha resposta aos gritos desesperados que lançara. Nada! O mundo emudecera... limpou-se. Depois deixou cair aquele pano sujo no charco onde o filho dormia. O pé, sem ela querer, foi escavando e arrastando terra... Aos poucos, o seu segredo ia ficando sepultado... Eram horas de regressar... e matar aquela sede sem fim na fonte fresca da Tenaria.”[7]
[1] A aluna autora é graduanda em direito do 3º período em Direito.
[2] Código Civil Brasileiro, 2002.
[3] TORGA, Miguel. Disponível em < http://groups.google.com/group/digitalsource1/65>. Acesso em 20/05/2011.
[4] ANDALAFT-NETO, J., 1993. Responsabilidade Profissional/Ética na Atenção ao Aborto. Trabalho apresentado no Módulo sobre Aborto do Programa de Estudos em Saúde Sexual e Reprodutiva, abril de 1993. Campinas: Núcleo de Estudos da População da Universidade de Campinas/Centro de Pesquisas das Doenças Materno-Infantis de Campinas.
[5] Id.,ibid., loc.cit.
[6] Pesquisa realizada pelo Centro de Pesquisa e Controle das Doenças Materno-Infantis – Campinas – SP.
[7] TORGA, Miguel. Bichos. Disponível em: < http://groups.google.com/group/digitalsource1/65> Acesso em: 20/05/2011.
BIBLIOGRAFIA;
ANDALAFT-NETO, J., 1993. Responsabilidade Profissional/Ética na Atenção ao Aborto. Trabalho apresentado no Módulo sobre Aborto do Programa de Estudos em Saúde Sexual e Reprodutiva, abril de 1993. Campinas: Núcleo de Estudos da População da Universidade de Campinas/Centro de Pesquisas das Doenças Materno-Infantis de Campinas.
Miguel Torga Bichos (1940)
DISPONÍVEL EM: <http://groups.google.com/group/digitalsource1/65> Acesso em 28/05/2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário